O livro os MORADORES DA RUA DA
PONTE de Maria de Lourdes Camelo nos leva a um passeio lírico no tempo da tenra
mocidade da autora. Maria de Lourdes traça o perfil psicológico dos moradores
da rua, com riqueza de detalhes, uma prosa poética deliciosa que me fez rir e
chorar diversas vezes. Eu tinha dúvidas sobre até que ponto o livro era ficção ou realidade. Mas autora tira todas as dúvidas na entrevista.
Marcos Martino: Maria de Lourdes, agradeço muito pela entrevista.
Tenho curiosidade sobre vários pontos.
Maria de Lourdes Camelo: Marcos, é sempre um prazer falar com você. Desta vez,
com especial alegria, para uma entrevista sobre o livro “Os moradores da Rua da
Ponte” de minha autoria. Li todas as suas perguntas e sinto-me tentada a falar não
tanto do livro, mas do Leitor, esse protagonista que, sem ele, a literatura não
tem sentido. O ato da leitura se constitui de dois polos: autor e leitor.
Pensando assim, o texto não é mais meu, é dele. Como tal, ele tem o direito de
julgar e interpretar, conforme seus parâmetros, seus preconceitos, suas crenças,
sua visão de mundo e até ideologia. A percepção, agora, é dele. Por esse
motivo, não posso, muito a contragosto, explicitar melhor qualquer personagem,
pois esse papel é, por direito, do leitor. O imaginário é dele e, se desejar,
poderá até recriar a obra, o que seria um exercício artístico e estético.
Marcos Martino: Até que ponto as histórias do livro são reais ou
ficcionais?
Maria de Lourdes Camelo: Todo o livro é ficção. Não posso negar que
a narrativa traga resíduos inconscientes do real. Todos os personagens são
fictícios, com exceção de Sr. Niquinho Gama, Sr. José Micaré, Dona Marica
Rodrigues e Geraldo, meu irmão.´
Marcos Martino: A rua do livro é inventada ou real?
Maria de Lourdes Camelo: É real. Reporto-me à rua que começa na
ponte e termina na casa de Sr. Djalma de Moraes.
Marcos Martino: Você realmente trabalhou no censo?
Maria de Lourdes Camelo: Não. Nunca trabalhei.
Marcos Martino: A casa de prostituição existiu?
Maria de Lourdes Camelo: Tenho uma vaga lembrança dela.
Marcos Martino: O cara ruim do livro... qual tipo de crueldade ele
praticava?
Maria de Lourdes Camelo: Fica por conta do imaginário do leitor.
Talvez ele tenha a resposta.
Marcos Martino: Em sua juventude, deve ter sido sofrido ver a
decadência de Olímpia. Você acha que ela tinha Alzheimer?
Maria de Lourdes Camelo: Boa pergunta. Instigante para mim. Olímpia
é uma personagem de ficção. Não sei, talvez o problema dela seja existencial.
Um vazio, solidão... Não sei. Talvez o leitor a entenda melhor que eu.
Marcos Martino: Talita é um caso que nos dá uma dimensão de como
funciona o preconceito e de certa forma, de um fakenews que predominava sobre a
realidade.
Maria de Lourdes Camelo: Escrevi Talita com muito amor e compaixão.
Inspirei-me numa passagem bíblica “Talita Kumi” em que seu pai, Jairo, procura
Jesus Cristo para ressuscitar a filha que estava morta. E o milagre acontece. É
outra resposta que delego ao leitor. Se ele preferir, poderá entender a
lepra de Talita para além do físico. Talvez a metáfora da humanidade. Mas , isso
fica na percepção de cada um.
Marcos Martino: Ema nos dá uma ideia de como era o recato à época. O marido pelo visto era rude e incompatível com a delicadeza dela.
Maria de Lourdes Camelo: Também era algo que acontecia com
frequência. Vou citar aqui um comentário de uma senhora de 92 anos,de São
Paulo, muito lúcida, que leu o meu livro: “Você retratou muito bem as mulheres daquela
época. Eram infelizes e silenciosas. Pareciam ter um pacto com a tristeza.”
Marcos Martino: Você diz que Hermógenes lhe apresentou o lado
sombrio da vida.
Maria de Lourdes Camelo: Hermógenes é um personagem de ficção. Tem
um currículo não muito saudável. Esse lado sombrio, fica a critério do leitor.
Dependerá da percepção dele.
Marcos Martino: Na casa de Lucrécia você teve oportunidade de
descobrir que as prostitutas no fundo eram pessoas
comuns e até divertidas. Creio que nem podia comentar isso na época que as
pessoas faziam o nome do pai.
Maria de Lourdes Camelo: Por que não? Elas também teriam uma alma
nobre, não?
Marcos Martino: A casa do promotor me parece ter sido o lugar que
mais a impressionou, pela perfeição do mundo
dele, tudo muito certinho, funcionando perfeitamente, ele mesmo muito altivo e
elegante, estou enganado?
Maria de Lourdes Camelo: Não. Essa possibilidade de inteligência
aliada à nobreza de alma e elegância pode ser sedutora. Apresentei um
personagem com essas características ou virtudes, se
preferir.
Marcos Martino: A casa do Sr. Nonô para mim foi uma das mais
interessantes. Deu vontade de passear na horta dele. Se
bem que para homem não tinha perigo. Mas pras mocinhas...deliciosa passagem.
Maria de Lourdes Camelo: Até eu me diverti com o Sr. Nonô. Ri muito
ao construí-lo. Mas acho que a pitada de malícia deu vigor ao texto. Fiquei fã
dele.
Marcos Martino: Dona Santina pra mim foi uma aula de amor. Eu
sempre tive comigo que amar é cuidar. Quanto amor nesse banho...
Maria de Lourdes Camelo: Sabe, eu também tive inveja dela. Pobre de
mim, nem chego a seus pés. Dona Santina é a amante perfeita.
Marcos Martino: Linda a história de Sr. José Ferreiro, artista
obreiro que constrói coisas úteis, obras de arte e utilitárias com uma
responsabilidade sacerdotal. Existiu tal pessoa?
Maria de Lourdes Camelo: Que eu me lembre, não. De repente, esse
personagem surgiu, todo humano, moderador e paternal. Gostei dele e me fez bem.
Marcos Martino: Seu Canjica não
deu bola pras assombrações e elas foram embora. Alvinópolis tinha muitos casos de assombrações.
Maria de Lourdes Camelo: Realmente, fui criada ouvindo essas histórias.
Entendi, desde cedo, que o mundo era povoado por assombrações.E se eu não me
controlar, até hoje, sou sobressaltada por esses medos.
Marcos Martino: Dona Alzira era uma super mulher, daquelas multi
tarefas que dão conta de um monte de coisas e vão levando a vida, com pressa e
ao mesmo tempo com poesia.Você também é um pouco de Dona Alzira, Maria de Lourdes?
Maria de Lourdes Camelo: Boa pergunta, Marcos. Acho que sou, sim.
Mas ela é muito mais forte que eu. É pura e perfeita. Identifico-me, principalmente,
com sua simplicidade. Seu ambiente , também, me fascina.
Marcos Martino: O caso de Dona Bila é de tensão no meio e alívio no
final. Uma vida resignada pelo machismo da época, mas feliz
na velhice. Nada como o tempo agindo, né?
Maria de Lourdes Camelo: É verdade. Mas a sublimação enobrece a
alma. A serenidade é uma meta e só ela pode nos trazer a paz, principalmente na
velhice, assim penso.
Marcos Martino: Maria Pingo D’Água foi o anjo pra fechar o livro,
uma figura divinal. Vocês tomaram foi água benta na mina dela.
Maria de Lourdes Camelo: Bela colocação, Marcos! Está vendo como o
leitor enriquece a obra? Eu não havia percebido
que a água era benta. Você fechou o texto da forma mais sagrada, deu a ele o
tom etéreo que faltava. Adorei! Chorei ao me despedir de Maria D’Água. Para
mim, ela representa a pureza inalcançável, algo que me comove só em pensar. Vamos
deixá-la feliz em seu universo . De minha parte, tenho um vislumbre de paz quando penso nela.
Marcos Martino: Maria de Lourdes, seu livro me fez chorar várias
vezes. Creio que a boa escrita tem de causar...e você me causou... e me causa
sempre. Agradeço muito e quero sempre ler suas coisas. Quando teremos novidades
suas?
Maria de Lourdes Camelo: Marcos, eu é que agradeço pela
oportunidade de falar um pouco sobre a obra e pela delicadeza de sua leitura, tão sensível e
poética. Você engrandeceu meu trabalho e fez seu papel
de Leitor Proficiente como sempre foi. Que “ Os Moradores da Rua da Ponte” nunca saiam de
sua biblioteca. Lá eles estarão seguros e em boas mãos. Um afetuoso abraço.